segunda-feira, 29 de julho de 2013

Sonhos

7h40. Linha amarela. Faço cálculos mentais subtraindo à socapa os minutos que demoro a fazer o percurso para me convencer de que vou chegar a tempo. À minha frente, uma senhora folheia uma revista cor-de-rosa enquanto a vizinha do lado vê as imagens por cima do ombro. Do outro lado, um adolescente vestido com cores berrantes sorri para o telemóvel perante uma piada qualquer embrulhada numa mensagem. De pé, encostada a um banco do metro, uma rapariga segura uma mala de cartão gasta, enfeitada com recortes de revista. Prada, McQueen e Valentino desfilam lado a lado com batons, stilettos e modelos esguias que riem, ajeitando o cabelo, olhando arrogantemente para quem segura na mala com mãos despidas de adornos. Na estação seguinte entra alguém que emana um aroma familiar. Olho em volta como que a chamar a memória. As senhoras da frente já partilham a revista e encontram-se em amena cavaqueira discutindo uma novela qualquer. O adolescente do banco ao lado já tinha sido substituído por um homem nervoso que olhava para a agenda e roía as unhas. À frente da rapariga da mala encontrava-se uma mulher de cabelo arranjado, calças de vinco e unhas feitas fitando as imagens por trás dos óculos de massa com um desprezo manifesto. Próxima paragem, anuncia a voz metálica. É a minha, penso, enquanto continuo irritada por não estar a conseguir identificar aquele aroma com fundo de âmbar e baunilha. Encaminho-me para a porta enquanto o metro abranda e ponho-me entre a rapariga e a mulher (ah, cá está a dona do perfume), mesmo a tempo de perceber o olhar despretensioso que a rapariga lhe dirige: "Pisa devagar porque estás a pisar os meus sonhos" e, de repente vem-me um nome à cabeça Le cinema. Enquanto saio do metro lembro-me de alguém que envergava esse aroma elegante e sofisticado fazendo das aparências a sua arma. Uma actriz, portanto. Tento-me lembrar do nome dela e pergunto-me onde estará agora. Provavelmente, a representar perante uma plateia vazia. Tenho pena de ter saído do metro antes da rapariga. Talvez lhe tivesse dito que fazer sentir os outros mal não é sinónimo de força, mas sim sinal da própria fraqueza.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Do perdão

E há uma altura em que conseguimos perdoar. Chega assim, de mansinho, e dá-nos uma pancadinha no ombro. A princípio nem nos apercebemos - franzimos o sobrolho, olhamos para o lado e  pomos os ouvidos à escuta mas parece que, nos entretantos, tudo nos distrai. As ideias antigas e os sentimentos menos bons pressentem o que está a acontecer e lá vêem eles, em debandada, a forçar as entradas e a inundar a cabeça. E é de repente que tudo se ilumina: uma gargalhada, um olhar cúmplice, uma conversa profunda que faz esconder a tristeza e a mágoa e dá lugar à esperança . É nessa altura que se faz as pazes com a memória, se redescobrem afinidades, se relembram outras andanças e se chama de volta o carinho, passando à frente da raiva e da desconfiança. Aceitam-se os erros, vive-se a união e adormece-se com uma leveza interior que há muito não se sentia. Finalmente há um elo que encontrou, novamente, o seu par. Agora, é reforçar as amarras e, sobretudo, ter vontade de o fazer.  

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Nano contos

"    Ele viu-a descer as escadas com ar de quem não se importava, mas que sabia que todos se importavam com ela. Tinha uma clave de sol tatuada no braço. Ele perguntou-lhe se sabia música. Ela respondeu: "Depende de quem me toca".   "

In vitro

Hoje o dia foi passado em reuniões de equipa, a aprender como se cria um ambiente que vá de encontro aos projectos terapêuticos. "Estes miúdos não podem ficar juntos porque pertencem à mesma turma na escola", "A e B precisam de alguém que lhes faça frente de modo a não dominarem as brincadeiras", "C e D não vão conseguir evoluir se se juntarem ao grupo mais elementos desestabilizadores", tudo informações preciosas que ajudam a juntar as peças do puzzle e que tornam o quebra-cabeça um pouco mais organizado para o arranque do próximo ano lectivo. É trabalho de falso controlo do destino mas que, ainda assim, acaba por ser gratificante quando se notam as mudanças ao nível do comportamento, as bocas dos mais tímidos a verbalizarem um "não" quando é necessário, o esforço que os mais agitados fazem para se controlarem, a união no grupo quando todos puxam uns pelos outros ou encorajam a sair da cama dos pais, com dicas e ideias que funcionaram com eles. 

Depois desta tarde fiquei quase a desejar que alguém tivesse feito o mesmo comigo: seleccionar cuidadosamente quem mais se parece comigo e colocá-lo ali à mão de semear, ao mesmo tempo que retirava umas quantas almas penadas que (pensa-se) não acrescentaram nada de novo à minha existência ou que corromperam o meu mundo cor-de-rosa com maldade gratuita. Mas logo a seguir sorrio de boca fechada perante essas fantasias. Aquilo que sou hoje é o resultado de uma constelação de inúmeros factores, cuja maior parte se prende com as pessoas que, em algum momento se cruzaram na minha vida. Pessoas importantes, pessoais essenciais, pessoas que aprenderam a estar, pessoas que foram corridas ao pontapé, pessoas que cujo lugar ainda marca um espaço vazio: todas elas deixaram alguma coisa, todas elas acrescentaram algo novo à minha existência. E espero que também tenham levado com elas um bocadinho de mim.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Da perda

"E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.


Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."

 - Miguel Sousa Tavares